o brigadeiro-da-vera sempre foi um acontecimento na família.
vera trabalha há anos na casa dos meus tios e não sei exatamente o papel dela, a não ser:
fazer o brigadeiro-da-vera. para mim, isso é tudo e isso basta e isso justifica carteira assinada e
todos os direitos garantidos. esse é o nível de importância do brigadeiro-da-vera.
o brigadeiro-da-vera era aberto ao público três vezes ao ano: fevereiro, maio e setembro,
os aniversários da casa.
no dia em que aconteceu essa história, chegamos ansiosos pelo evento porque era setembro e,
portanto, aniversário do meu tio e, portanto, a última chance do ano de saborear a iguaria.
como de costume, a bandeja saiu triunfante da cozinha. só que dessa vez chegou com um alerta inédito:
cuidado, pode conter vidro.
uma nova receita? um novo tipo de granulado? uma piada?
não, pode conter, r-e-a-l-m-e-n-t-e, vidro!
acontece que enquanto a vera enrolava o brigadeiro-da-vera, talvez exausta da função,
derrubou o pote no chão, que quebrou e os cacos se misturaram com o chocolate.
e a vera, talvez exausta da função, tirou o excesso e enrolou mesmo assim.
aí minha tia resolveu que a solução mais coerente seria somente avisar, ao invés de descartar.
e assim avisou, com desdém. e, com descaso também, todos desconsideramos a irresponsabilidade de servir
o brigadeiro-da-vera com a crocância extra. ninguém estava muito preocupado, afinal, era a última oportunidade do ano e era o brigadeiro-da-vera, ora bolas. bolas, aliás, irresistíveis da melhor combinação de leite condensado com chocolate em pó, com vidro ou sem vidro.
a partir dali foi uma verdadeira roleta russa.
a cada mordida, uma emoção dupla:
o tesão de estar com o brigadeiro-da-vera nas mãos,
a tensão de ser surpreendido por um vidro.
a bandeja olhando e desafiando: vocês vão ter que me engolir.
e engolimos. devoramos.
cada um que pegava tinha como público todos os demais olhos, ansiosos e na torcida
para que desse tudo certo e não precisassem interromper o ritual com uma corrida ao hospital.
não sei se alguém foi premiado.
optamos pelo prêmio maior, o brigadeiro-da-vera em si.
e, convenhamos, isso é viver.
a vida pode conter vidro!
um dia na praia pode conter chuva.
um amor eterno pode conter fim.
uma calça jeans dos sonhos pode conter aperto.
um copo de cerveja pode conter ressaca.
uma tarde de sábado pode conter tédio.
e o brigadeiro-da-vera pode conter vidro.
a gente quer arriscar. eu, pelo menos, quero.
prefiro focar e aproveitar um granulado de chocolate certeiro que abrir mão do doce pelos cacos incertos.
comi com gosto porque era a última leva do ano.
comi como se fosse a última vez.
e foi. não me lembro de ter saboreado novas rodadas depois disso.
já pensou se eu tivesse escolhido me conter só porque pode (de repente-não se sabe) conter vidro?
photo by chuttersnap on unsplash
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