top of page

para ou repara


comecei a brincar de fusca azul agora, aos quarenta e um anos.


sabe o que é? cada vez que passa um fusca azul na rua, você dá um tapa na pessoa ao lado.


a regra: quem viu primeiro bate no amiguinho, como se para chamar a atenção para aquele acontecimento

que é um fusca azul passando diante dos seus olhos. e o amiguinho não pode revidar.

o motivo: entretenimento.

a origem: dizem que tudo começou com henry ford, lá por volta de 1914, nos estados unidos. foi se espalhando pelo mundo e avançando no tempo até chegar ao fusca da volkswagen. mas essa história não é o foco aqui.

o foco aqui: todo mundo conhece essa brincadeira. menos eu.


aprendi no susto, com um tapa inesperado vindo de um amigo que aparentemente não tinha razão nenhuma para me bater. na verdade ele tinha, mas só descobri depois, quando ele apontou o carro ali parado (que eu nem tinha reparado) e explicou - mas não se desculpou. afinal, tinha motivos de sobra para a agressão, todo mundo entenderia e defenderia o lado dele. tinha direitos garantidos pela lei do fusca azul.


o fato: desde então, vejo fusca azul por todo canto, quase todos os dias.

onde eu estava que não sabia dessa brincadeira?

e mais, onde estavam esses fuscas que estão por todos os lados e eu nunca tinha reparado?


agora meu amigo recebe fotos de fusca azul quase diariamente. não equivale ao tapa, mas é minha forma

de tirar o atraso na brincadeira.


mas nem só fuscas são azuis pelas ruas.


curiosamente, vejo - e com uma frequência intrigante - sarjetas com uma inexplicável água azul correndo

por elas. imagino que seja tinta. mas que tanto pintam? e de azul? e por que vai parar nas ruas? e por que

não tem tantas casas azuis para justificar esse aguaceiro todo? sempre passo, reparo e essas águas passadas

me levam para longe...

seguindo pelas ruas, também é possível ver flores azuis. não tem tantas quanto sarjetas, mas tem. dizem que não existe, mas esses que dizem provavelmente não param para reparar.


pelos ares, observo borboletas. elas são, na maioria, brancas, amarelas ou marrons. tem umas laranjas também.

azuis quase não vejo, mas existem. e são lindíssimas. e quando passo por elas, s-e-m-p-r-e paro e fico ali, reparada no seu voo. e isso faço com as bichinhas em geral, independentemente da cor das asas.


se olhar para cima, céu é azul. isso não é novidade para ninguém e está sempre ali, ao alcance dos olhos -

talvez por isso não desperte tanto encanto quanto a borboleta, que não aparece sempre, pega de surpresa e

acaba gerando essa expectativa na gente. curiosamente, as pessoas só parecem reparar quando o céu fica rosa e inunda o instagram, ou cinza e com chances de inundar as ruas. mas e o céu de outubro com seu inigualável azul límpido? e o céu de janeiro e seu azul vibrante com um quê de dourado? e o céu de abril e o contraste do azul com as nuvens branquinhas? dizem que céu é tudo igual, pois discordo desses que dizem. tem diferenças sutis, mas só quem para é que pode reparar.


voltando para o chão, outro dia meu vizinho pintou a calçada dele toda de azul. não gostei, não parei,

mas reparei. e segui pensando na sarjeta que recebeu essa água azul no dia da arte.


eu sou assim, uma pessoa dedicada às cotidianices. ando muito a pé, sempre de olhos e orelhas em pé também.

e por isso estranho eu não tenha reparado antes na quantidade de fuscas azuis que existe pelas ruas.

o bom é que agora não somente paro para fotografar, como reparo nas outras cores de fusca que têm por aí.

aí acompanho eles seguindo até sairem no meu campo de visão. mais ou menos como faço com as borboletas.


porque tem coisas bonitas que a gente vê e tem belezas que só depende da gente sentir.


e às vezes precisamos tomar um tapa para abrir os olhos para as sutilezas e lindezas que estão sempre ali,

mas ficam deslembradas pelos cantos.


se a gente não parar e reparar, o cotidiano, coitado, é atropelado pela correria da rotina.




photo by dan gold on unsplash

Comments


bottom of page