meu cachorro faz o tipo introspectivo.
lê dostoiévski (que, com intimidade, ele chama de fiódor) no original,
prestigia o cinema húngaro, é rigoroso com o brandy que bebe,
usa chambre de seda vinho, tem seu lugar definido no sofá.
meu cachorro é discreto. acha um porre histeria, gente escandalosa,
comportamentos expansivos. e é categórico: não suporta que eu dance.
meu cachorro é bastante exausto também. passa o dia em repouso,
evita movimentos bruscos, por vezes ronca. não concorda que eu beba porque
aí precisa ficar alerta ao meu lado - e alerta é algo que ele prefere não ficar.
meu cachorro gosta de ficar no seu canto. e que deixem ele quieto lá... q-u-i-e-t-o.
meu cachorro não fala.
se falasse, seria uma língua quase extinta,
algum dialeto em desuso de esquinas do oriente,
com poucas palavras.
meu cachorro não fala, também não late.
meus vizinhos nem desconfiam que tenha um animal aqui.
das três ou quatro vezes (na vida!) em que arriscou,
o que se ouviu foi um ruído empoeirado.
meu cachorro não fala, nem late,
e, por ser um cara de poucas palavras, adora um clichê.
meu cachorro, quando tem fome, senta em frente ao prato e olha fixamente
esperando a comida se materializar ali dentro. sem desespero, sem escarcéu.
apenas paciência, afinal,
de nada adianta ir com muita sede ao pote.
meu cachorro para na porta na hora em que a bexiga aperta.
desafia a maçaneta a reagir, mas não apressa nada porque sabe que
tudo tem seu tempo.
meu cachorro não consegue subir sozinho na minha cama.
para chegar lá, estuda o alto como um alpinista ao cume.
ao contrário do alpinista, porém, não tem planos de ação.
quem espera sempre alcança, pensa.
meu cachorro escolhe o caminho dos passeios e, se discordo,
ele empaca até que consiga passar seu recado.
acredita que atitudes valem mais que palavras.
meu cachorro outro dia encontrou uma cueca largada
no pé da minha cama, abocanhou e deixou um buraco.
em silêncio (e talvez com um pouco de rancor),
passou o recado ao dono da peça:
cão que late não morde, já o que não late...
meu cachorro não fala, não late, gosta de clichês,
e acredita no poder da mente.
afinal, consegue o que quer sem euforia ou estardalhaço,
apenas olhar, serenidade e um forte desejo.
eu estar por perto quando a mágica acontece é só uma coincidência mesmo.
para ele, é com o poder da mente que a ração aparece no prato, que a porta uma hora se rende,
que decola para o topo da cama, que seu caminho sempre vence no final.
e foi assim que o cara saiu sem a cueca e nunca mais voltou.
meu cachorro aprendeu faz tempo que não é no grito que se ganha as coisas.
o falar é prata, o calar é ouro?
pois bem... é clichê, ele sabe, mas é sábio para não perder tempo se explicando.
sou mestre na arte de falar em silêncio.
toda a minha vida falei calando-me
diria fiódor.
meu cachorro falaria isso também. se falasse.
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