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deixei de ser pássaro porque queria voar

antes de ser pássaro eu era gente.

virei um pássaro de tanto que quis ser pássaro. olhava com muita admiração.

não, era com inveja. super-homem, avião, pipa, bolha de sabão também.

tudo isso sempre me deu inveja porque eram coisas que podiam voar.

achava livre, achava solto, achava que podia ir para qualquer lugar. bastava decolar.


logo descartei ser pipa e bolha de sabão - um dependia de vento e outro do sopro,

mas nem sempre o ar está a fim de te empurrar.


super-homem também deixei de lado porque tinha que se trocar e

é muito chato ter um modelo para fazer qualquer coisa.


avião desisti logo em seguida porque tem muitos botões e regras.


aí decidi: vou ser pássaro.

certo ele que voa e faz valer a pena.


sempre quis voar.

desde criança, quando amarrava uma blusa nas costas e ia pelos ares.

pulava do sofá e decolava.

saltava na cama e flutuava.

quando se é criança, tudo é motivo para voar e nada é razão para impedir. só vai e voa, independentemente do que digam.


o problema é que sempre tem alguém com algo a dizer.

vai com cuidado, vai cair, vai machucar, não vai no alto, não vai longe, não vai.

e a gente começa a arremeter aos poucos.


na adolescência, eu quis ser aeromoça antes mesmo de ter entrado num avião.

mas quem tinha algo a dizer dizia que eu já não era mais nenhuma criança...

e por isso precisava colocar os pés no chão.


daí, já quase adulta, eu aprendi a viajar e entendi o sonho adolescente.

o curioso é que tenho claustrofobia, que é pânico de lugar fechado.

tenho também pavor de altura.

e ainda assim estou sempre no avião, o que, sabemos,

é andar em uma caixa fechada a 40 mil pés de altura.


mas voa.

e porque voa não tenho medo.


voar não é humano, mas faz parte da nossa essência.

voamos em sonhos.

imaginamos que voamos no futuro.

brigamos para ver quem voou primeiro no passado (santos dumont ou irmãos wright?)


quando vem uma ideia boa, voamos longe, é o que dizemos.

e não é uma delícia ter uma ideia boa? imagina voar de verdade com ela, então?


hoje, adulta, tenho uma pena tatuada.

tenho também dois quero-queros em movimento. e uma borboleta.

tudo para me lembrar de voar.


voar é sentir frio na barriga,

é saber que são suas próprias asas que fazem pairar e te levam adiante,

é não sentir o chão e isso nem fazer falta.

é olhar de cima e poder escolher onde pousar, onde aninhar, onde se alimentar.


fácil não é.

sonhamos que voamos, é verdade,

mas com receio de tirar o pé do chão (mesmo quando não se sabe onde está pisando).

imaginamos que voamos no futuro, mas só porque sabemos que o futuro não chega.

brigamos para ver quem voou primeiro, mas ninguém quer se jogar na frente.

na hora h dá pane.

aí em algum momento da vida desistimos de vez.

achamos que voar não é para gente e

não sabemos o que fazer com essa tal liberdade...

e se voar alto e sumir como o padre do balão?

e se voar e perder o controle?

e se esse pessoal que tem algo a dizer estiver dizendo algo certo?


só que se não fosse para voar, não seria tudo ar...


foi então que virei pássaro e dane-se se o mundo tinha algo a dizer.

no começo é tentar-tentar-tentar e cair.

fácil não é.

olha o esforço do beija-flor que precisa bater as asas 90x por segundo.

ou o tucano que não pode ir para longe porque tem asas curtas.

mas tudo bem.

o tucano segue, o beija-flor segue.


e a gente, o que a gente segue?


mas aí, quando fui pássaro,

descobri que pássaro precisa migrar para sobreviver

e eu queria poder ser em qualquer lugar, sem fugir.

pássaro anda num só bando e eu queria misturar.

pássaro não tem dente e eu queria sorrir.

pássaro nasce com o peso da obrigação de voar

e eu só queria a leveza do ar.

então descobri que eu não tinha inveja do pássaro,

eu tinha desejo de ventar.


não quis mais ser pássaro,

voltei a ser eu

porque eu só queria voar

ao ar,

livre.






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