(03 de setembro 2019, véspera do meu aniversário de 40 anos.
favela de kibera, nairóbi - quênia)
já estava lá havia uma semana - talvez mais, talvez menos - e conhecia
cada uma das crianças da creche. blessy, gifty, lovely... todas elas.
(nomes poéticos assim são comuns por lá)
e aí apareceu a angel. uns quatro ou cinco anos de idade, tímida,
no canto, curiosa com a mzungo.
('homem branco', para os quenianos)
mzungo era eu, uma gringa de cor-idioma-roupa-ritmo tudo diferente.
ela, no meio daquela criançada toda, também foi diferente para mim.
eu não sei swahili.
(idioma oficial do quênia)
ela ainda não entendia inglês.
(segundo idioma do país, mas as crianças não falam desde cedo)
português, naturalmente, também não.
escolhi falar a língua do balão azul.
ela entendeu.
(balão é balão no mundo inteiro)
balão azul pra cá, balão azul pra lá... e enquanto ele girava no ar,
percebi que todo o resto do mundo parou. as crianças ao lado ficaram longe e
meu coração lembrou de coisas boas que não sei dizer o que eram, mas eram.
ela me olhava fundo, pro fundo dos olhos.
nunca alguém tinha me olhado assim, como se me conhecesse tanto,
e há tanto, e com tanta felicidade em me (re)encontrar.
eu também nunca tinha olhado alguém assim, como se conhecesse tanto,
e há tanto, e com tanta felicidade em (re)encontrar.
(olhar é o idioma das almas)
e me abraçava como quem chega em casa de uma viagem ao japão,
ou como quem não quer perder a bolsa no meio da multidão.
de um jeito como se só eu pudesse dar o que ela sempre tinha procurado.
(mas foi o contrário, ela é que estava me dando o que eu nunca tinha achado)
colocamos em dia um papo antigo, afinal, não nos víamos havia tempos, vidas.
foram duas ou três horas nos ares.
e nem vi passar, ocupada demais voando o balão azul.
(almas não contam tempo, almas vivem o tempo)
(dia seguinte, 4 de setembro, meu aniversário)
voltei com bolo, refrigerante, doces, balões azuis e todas as outras cores para a festa das crianças.
a angel não foi.
até a véspera, nunca tinha aparecido por lá. depois também não voltou mais.
anjos são assim, vêm, fazem o que precisam fazer, se vão.
(40 anos)
é aí que a vida começa, dizem;
e tudo será diferente, disse aquele olhar;
e foi mesmo, hoje digo.
ali me dei conta de que, como no balão azul, o que está dentro da gente é o que nos coloca em movimento.
isso também chama amor.
e o que chamamos de olhar, também é perceber-acolher-ouvir.
isso chama empatia. por vezes, simpatia.
entendi, por fim, que viver é simplesmente isso:
estar no presente de alma presente, para você e para o outro.
onde e com quem escolheu estar.
de intenção e de coração.
essa presença no mundo foi a melhor coisa que já ganhei - de mim mesma e de alguém.
até aquele aniversário, nunca tinha sentido isso,
e hoje vejo que é porque até então nada tinha sentido mesmo.
precisou um anjo aparecer e fazer o mundo parar
antes de voltar a girar,
só que agora em um outro sentido.
agora com um outro sentir.
asante sana, angel.
(muito obrigada, meu anjo)
Meus olhos encheram de lágrimas...