adulta é a tia!
já faz tempo que não sou nenhuma criança, mas falar que sou
adulta não acho que seja o caso.
sei lá, parece serião demais. está mais para umas tias (coisa que já sou) ou
para quem conta histórias do meu tempo (coisa que já faço também).
não nego a idade,
recuso gentilmente o título.
tudo isso porque o mundo tem a mania de
perder tempo com o que o outro faz com seu tempo.
e aí veio com esse papo de que, a partir de
determinado ponto, pessoas entre 20 e 60
teriam que fazer as coisas de determinado jeito.
sossega o facho, controla os impulsos,
também o pulso, e o pulo,
desce da cadeira, abaixo o som,
da música, da voz, da expectativa,
enruga essa testa, estica os dias, encurta o sono.
agora fica meio desanimado,
pensando em como era bom o passado,
enfia minhocas na cabeça,
e meia dúzia de culpas no peito,
e sapato nos pés.
encana com umas contas, conta umas vantagens,
fala de umas vidas que não sejam suas,
mas não esquece de reclamar da que você tem,
faz sem pensar - e, pelamor de deus, não me vá sentir.
(nem sempre gostam que a gente pense, ou sinta, ou o que quiser)
esse é o pacote adulto,
um pacote pesado de levar,
que o mundo quer.
eu não quero.
se tem algo que a idade me contou é que
as coisas têm o peso do peso que a gente dá.
e a vida eu prefiro leve, sem pesar.
casei e
não me achei adulta
por ter ido até o cartório dizer sim,
nem quando voltei lá, anos depois, para dizer que não queria mais.
certa vez me percebi dedicada demais à prateleira de potinhos organizadores,
mas logo fui pro corredor da cerveja
e passou.
também já faz dois anos que minha médica inclui mamografia na rotina.
sintoma de que tem um tempo passando -
mas, para mim, é o tipo de coisa que
passa e nem sinto.
contas no débito automático, eu tenho.
um plano de saúde próprio, um contador, um cnpj também.
meu passaporte já está na terceira ou quarta via,
do RG sabe-se lá em qual estou,
um sem-número de documentos amarelos estão no fundo do armário
porque posso precisar um dia.
e tenho idade o suficiente para saber que dificilmente precisarei.
sei também o que fazer em imprevistos domésticos inesperados,
o preço do papel higiênico e do quilo do tomate inclusive fora de época,
já assinei muitos contratos - com rubrica, até!
estou em dia com essas e outras tantas preocupações de adulto,
é assim que outros veem.
coisas naturais da vida, eu vejo.
cheguei no mundo a tempo de conferir
a xuxa na tv manchete e a MTV no canal 32.
e de usar bip (que depois chamaram de pager) ou,
antes ainda,
o telefone enquanto bem de família.
mas nada disso,
nem virar a casa dos 30 e
nem a dos 40,
foi suficiente para me convencer a usar a
classificação: adulta.
até porque nunca fui boa com números e, portanto,
anos não me dizem nada.
claro que não me considero adolescente (embora às vezes me comporte como tal),
tampouco idosa (de vez em quando pareço, sim).
mas, convenhamos, aquela adulta lá de cima também não é o caso.
então não me considero.
sou, podemos dizer,
atemporal.
sem tempo para pensar nessas coisas que
não tem porque pensar.
nem pesar.
e aí chegou o dia de hoje.
enquanto fazia meu almoço,
perdi o pano de prato em algum canto da cozinha:
procurei, procurei, desisti, a gaveta me deu outro, segui.
quase trinta minutos depois, com a comida em mãos e prestes a sentar,
achei o dito pendurado no ombro.
e naquele exato instante,
no intervalo para comer alguma coisinha entre uma reunião e outra,
depois de preparar meu próprio almoço porque a economia não está fácil e
a gente precisa economizar,
quando o óbvio estava debaixo do meu nariz e nem percebi porque
não só o fogão estava no automático,
foi nesse exato instante que
o peso do pano de prato no ombro pesou
e senti o que parecia ser uma adulta me batendo no ombro.
mas aí o som começou a tocar uma do
meu tempo. abri uma cerveja e dancei conforme a
minha música.
o pano foi lavar e não voltamos a falar sobre isso.
sou atemporal, sem tempo
para pensar nessas coisas que não tem porque pensar.
nem pesar.
"o escritor é um ser que nunca chega a ficar adulto"
(martin amis - experience: a memoir)
